Antes de nascer o mundo
“Um dia Deus virá a nos pedir desculpas”.
Quem nunca construiu um mundo de fantasias, para que esse em algum momento pudesse se tornar realidade?
Boa parte das pessoas, imagino. E muito escritores narraram boas histórias, baseados nelas.
Também, inaugurar uma nova terra, para construir uma nova civilização? De Abraão a muitos líderes modernos, já respondo.
Entretanto, fundar uma nova terra para que Deus pudesse pedir perdão pelo sofrimento causado a alguém, e de forma tão estilizada, só escritores que manejam tinta com arte, entre eles, o autor de Antes de nascer o mundo, Mia Couto.
Mia Couto foi para mim uma revelação. Um daqueles autores que você lê e quer logo saber de onde vem, o que faz, quantos livros publicou. E reserva já na sua agenda um tempo para tentar ler tudo o que escreve.
O autor é moçambicano e tem dezenas de obras publicadas, entre as principais Antes de nascer o mundo, Terra sonâmbula e O Fio das missangas.
Em uma narrativa carregada de lirismo e mística, ele conduz este livro, que poderia se tratar de um ensaio psicológico de como não se educar pessoas ou conduzir sentimentos. Mas aqui se revela em poesia na palavra.
Contudo, é mais do que isso; é uma verdadeira obra-desterro, em que o personagem principal Silvério inaugura um novo mundo, Jesusalém, para não enfrentar mais nenhuma dor, plano que, antecipo, falha.
O protagonista, após forte decepção, foge com o empregado, um ente e dois filhos para um acampamento abandonado e ali os rebatizas para a vida. E os filhos ali crescem se perguntando o que aconteceu com o pai, a mãe e resto do mundo.
É uma história em que os personagens aprendem a conviver com o silêncio e exercitam a curiosidade ao extremo. E onde os filhos aprendem que pior que não saber contar histórias é não ter a quem contá-las. E se perdem entre o que foi e o que poderia ter sido.
Não é um livro sobre perda de esperança, mas perda de confiança. Também não é um livro sobre medidas exatas. Mas sobre almas despedaçadas.
É ainda um desenrolar sensual, ainda, em que mulheres surgem como elementos de transformação. E que sua ausência autoriza um mundo de amor lascivo, que se bestifica e se reproduz em nova espécie.
A saber, Jesusalém não existe no mundo dos loucos. É parte de todos nós. E a vida só sucede aqui porque deixou-se de querer entendê-la, pois, no fundo, é passagem e é resgate.
Não pôde ser imposta, como Silvério tentou fazê-la aos filhos e subordinados. Tampouco, substituída por outra. Ou não seria apenas o fim de uma vida, mas o fim do mundo, ao final.
A lição é que todos somos capazes de superar o desespero, mas é preciso querer fazer essa transposição para o desconhecido, mesmo que o desafio seja fundar uma nova Jerusalém.