Torto Arado
“Dona Lourdes não sabia por que estávamos ali, nem de onde vieram nossos pais, nem o que fazíamos”, “em suas frases e textos só havia histórias de soldado, professor, médico e juiz.”

Torto Arado é um livro encantador, que dá voz às irmãs Belonísia e Bibiana. As duas são filhas de Zeca Chapéu Grande, um dos trabalhadores da Fazenda Água Negra e líder do jarê, religião afro-brasileira praticada na região da Chapada Diamantina, na Bahia, influenciada pela umbanda, pelo espiritismo e pelo catolicismo.
As primeiras páginas do livro mostram as travessuras de Belonísia e Bibiana, que, ainda meninas, brincam com uma faca que a avó mantinha escondida. Belonísia acaba decepando a própria língua e fica muda e a outra se torna sua voz, interpretando seus grunhidos e gestos. O leitor só descobre qual das irmãs perdeu a língua depois de quase um terço do livro.
Zeca Chapéu Grande era respeitado pela comunidade local. Além de curar doentes e espíritos perturbados, fazia as vezes de líder político, de pelego e amenizador dos conflitos entre trabalhadores, insatisfeitos com a exploração.
Contrariamente ao líder espiritual, está o jovem Severo, que organiza os trabalhadores para permanecerem ligados à terra. Eles estão ameaçados de serem expulsos da Fazenda devido à venda, pelos herdeiros, da propriedade.
Os trabalhadores de Água Negra não recebiam salário para trabalhar, apenas morada. As construções de alvenaria eram proibidas e só era possível cultivar roças no quintal, em pequenas quantidades. Só ganhavam algum dinheiro quando vendiam na feira os mantimentos que sobravam. Eram quase todos negros, descendentes dos escravizados libertos havia poucas décadas.
O livro é narrado por vozes femininas e mostra o tema da desigualdade. É uma trama de violência, da fome, da agressão familiar e da perda do medo. No entrelaçar de vozes, Belonísia torna-se personagem da vida da fazenda e Bibiana, das injustiças sociais.
Belonísia mistura-se à terra arada e Bibiana junta-se à luta pela emancipação e pelo direito à terra. Personagens ligados à tradição da terra cobram gratidão às novas famílias. E os descendentes reivindicam participação pelo tempo em que se dedicaram aos patrões. Itamar Vieira, entretanto, denuncia expressamente a situação de servidão a que todos estão submetidos.